Manhã fria! Ou melhor, gélida! Céu fechado, onde nuvens cinzentas salpicavam finas gotículas, que dançavam esvoaçantes e tingiam de prata os guarda-chuvas negros e as sobrinhas coloridas carregadas por vultos encolhidos que deslizavam pelas ruas.
“Quem olhar do alto dos edifícios será que verá pontos coloridos envoltos em pingos prateados?”. Tal pensamento vez brotar um grande sorriso nos lábios de Carolina. “E eu serei um pontinho vermelho, salpicado de prata, como uma bolinha de árvore de Natal! Sim! Hoje o mundo parece uma grande e luminosa árvore de Natal!”.
Algumas pessoas, menos apressadas, olhavam Carolina com espanto. Pensavam: “Como alguém pode sorrir assim, num dia tão melancólico!”. Mas Carolina não se importava com os dias pálidos, com a chuva, com o frio. Carolina, na verdade, amava esses dias de inverno, pois era neles que sua imaginação começava a voar. Pois, para Carolina, era muito mais fácil tecer devaneios no brilho do verão ou no esplendor da primavera, onde as luzes, as cores, os cheiros, os sabores invadiam e inebriavam os sentidos, fazendo as pessoas voarem e sonharem. Difícil mesmo era gerar vida a partir do gelo, do frio, da chuva, do branco, do preto e do gris. Era complicado tecer costuras, pinturas, sinfonias, textos, coreografias! Era preciso muito força, muita determinação!
Mas Carolina, desde cedo, aprendera a ser determinada! Nascera no mundo cinza e, mesmo assim, não se resignara com sua falta de cores. Gostava de colorir o mundo! Era como construir caleidoscópios, que mudavam de formas e de cores com suaves movimentos das mãos. Mundos-caleidoscópios. Mundos-arco-irís! Mundos coloridos que desafiavam as geleiras monótonas. Mundos que dançavam valsas com vestidos vaporosos e multicoloridos em lagos congelados. Mundos-Carolina.
Quando criança, Carolina e os irmãos, haviam encontrado perdido no lixo, um pequeno objeto. Os irmãos não deram importância, mas Carolina decidira explorá-lo. Primeiro, girou-o vagarosamente nas mãos, pensando: “Para que serve isso?”. Depois, ao ver o pequeno orifício, decidiu experimentá-lo nos olhos. Ficou simplesmente extasiada com aquilo que via! À medida que girava o pequenino objeto mudavam as formas, mudavam as cores! O mundo não era mais cinza, mas se tornava pleno de todas as formas, de todas as cores!
A partir desse dia, o caleidoscópio se tornou companheiro inseparável de Carolina. Aliás, ela só foi saber seu nome em uma das aulas do colégio, nos poucos anos que as frequentara. Achara a palavra tão mágica quanto o objeto. CA-LE-DOS-CÓ-PIO. Gostava de repetir baixinho, saboreando cada sílaba. Quando ficava triste, desanimada, com medo, com fome, com frio, Carolina sabia que tudo sempre poderia mudar de formas, ter novas cores. Era só olhar pelo pequeno orifício e gira-lo nas mãos.
Envolta em seus pensamentos-caleidoscópios Carolina deu-se conta que já se encontrava em frente ao velho sobrado onde havia sido indicada para trabalhar. Já o visitara uma vez, trazida por Dona Ana, sua simpática e solicita vizinha, que sempre ajudava à pobre e grande família de Carolina. O sobrado branco com janelas amarelas na esquina da praça pertencia a um velho e reservado doutor. Conforme o combinado, Carolina deveria vir uma vez por semana, sempre as sextas-feiras, para limpar a biblioteca. Dona Ana, que cozinhava e cuidava do resto da casa, lhe contara que o doutor era muito exigente e tinha muito cuidado com seus livros. Por isso, pedira alguém de “muita confiança”! E Dona Ana a tinha recomendado bem! E ela não iria decepcioná-los!
Carolina subiu os degraus e apertou a campainha. Logo Dona Ana abriu a porta. Recebeu Carolina com um alegre sorriso! “Então menina, vamos nos aquecer um pouquinho antes de começar o trabalho!”, disse alegremente levando Carolina para a grande cozinha. Como na primeira vez, Carolina ficou encantada com a beleza da casa! Tão grande, tão colorida, cheia de quadros, tapetes, cortinas! “Como um palácio!”, pensou Carolina.
Na grande cozinha, Dona Ana serviu um café quente para Carolina. Foi bom sentir não apenas o cheiro delicioso de café recém-passado, mas o calor da xícara nas mãos e o gosto forte e revigorante, que literalmente esquentou o corpo de Carolina. Enquanto Carolina deliciava-se com o café quente, Dona Ana tagarelava. Recontava pela milésima vez que trabalhava na casa do doutor há mais de vinte anos, que cuidara da sua filha desde bebê, que gostava muito da esposa falecida do doutor. Que Carolina não teria como imaginar o quanto a casa ficara triste com a morte da senhora e depois com o casamento da moça. A casa estava vazia e solitária, como o coração do doutor. E o quanto o doutor ficara estranho depois da morte da esposa! Passava horas e horas fechado na biblioteca, ás vezes até fazia as refeições lá. Dona Ana desconfiava que o doutor, em muitas ocasiões, dormia na biblioteca.
Com um leve sorriso e olhos suavemente brilhantes, Carolina comentou o quanto deveria ser maravilhoso ter uma biblioteca, pois as histórias dos livros podem nos fazer companhia quando nos sentimos sozinhos ou tristes. Dona Ana lançou-lhe um olhar onde incredulidade e piedade pareciam coabitar. “A menina ainda precisa aprender muito sobre a vida! Onde se viu livro fazer companhia a alguém! Ainda mais livros que falam coisas de gente doente!”. Querendo colocar um ponto definitivo na conversa que, para Dona Ana, parecia mais uma ideia maluca da sonhadora Carolina, sugeriu que a menina fosse colocar o avental a fim de começar logo o serviço.
Carolina seguiu Dona Ana até a parte da casa destinada aos empregados, vestiu o avental, pegou o material de limpeza e se encaminharam para a biblioteca, que ficava no sótão do sobrado. Enquanto percorriam salas, corredores, escadarias, Carolina queria reter em seus olhos todas as cores e formas que vislumbrava pelo caminho.
Finalmente chegaram à porta que dava acesso a biblioteca. Dona Ana a abriu e fez Carolina entrar, lembrando que deveria tomar cuidado com todos os objetos e não tirar nada do lugar. Voltaria na hora do almoço para pegá-la.
Carolina ficou parada, quase sem ar, frente à magnitude da sala. Praticamente todas as paredes constituíam-se de grandiosas estantes, que iam do chão ao teto, recheadas de livros multicoloridos. Em cada uma delas, enormes escadas móveis pediam solitárias. A única parede sem estantes era uma grande janela, com vistas para as árvores da praça. Em frente à janela estava uma grande mesa, cheia de livros, canetas, lápis, cadernos e um abajur. Uma cadeira de couro completava o conjunto.
Mas algo chamou a atenção de Carolina, fazendo-a se aproximar da janela. Num canto, havia uma espécie de caleidoscópio, maior que o seu encaixado em um suporte de metal e voltado para o céu. Timidamente Carolina tocou no caleidoscópio estranho. “Será que ele gira?”, pensou. Acariciou amorosamente o caleidoscópio gigante. Frio, gelado e sem movimento. Inclinou e colocou um dos olhos no seu orifício. Viu o céu. “Que estranho! Não gira e não tem cores! Deve estar com defeito. Coitado do doutor!”, pensou.
Um pouco decepcionada, Carolina começou a limpeza. Na primeira estante, limpou cuidadosamente vários livros de medicina, muitos em línguas que não conhecia. Quando iria começar a limpeza da segunda estante, Dona Ana surgiu e a convidou para almoçar.
Foi bom descansar e saborear um delicioso almoço preparado por Dona Ana no calor da cozinha. Depois Carolina voltou ao trabalho. Na segunda estante, encontrou livros diferentes, que não deviam ser do ofício do doutor. Livros com muitas pinturas e esculturas, que deslumbraram os olhos de Carolina com suas cores e suas formas. “Como será ver isso de verdade? Como será tocar?” pensava Carolina, quando abria e olhava os livros que lhe chamavam mais a atenção.
Na terceira estante encontrou livros que julgou serem de histórias, alguns que falavam de terras distantes, de amores, de aventuras, de tristezas, de política. Alguns tinham versos, pois aprendera sobre versos na escola. No final dessa estante Carolina encontrou um livro com a figura do caleidoscópio gigante do doutor. Curiosa, Carolina o abriu. E, então, descobriu que o caleidoscópio gigante se chamava na verdade telescópio e servia para observar as estrelas! E também descobriu que as estrelas eram astros coloridos que estavam no céu. Então, de certa forma, o telescópio era um caleidoscópio gigante, que via as cores e as formas do céu!
Carolina se aproximou da mesa e viu várias anotações e mapas sobre as estrelas e os planetas. Também leu versos do doutor sobre as estrelas e sobre seu amor pela esposa falecida. Sorrindo feliz Carolina deu-se conta que o doutor, como ela, também sabia ver novas formas e novas cores com seu telescópio, criando um mundo onde as cores e as formas sabem acalentar e fazer sonhar.