Mundos Caleidoscópios

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Manhã fria! Ou melhor, gélida! Céu fechado, onde nuvens cinzentas salpicavam finas gotículas, que dançavam esvoaçantes e tingiam de prata os guarda-chuvas negros e as sobrinhas coloridas carregadas por vultos encolhidos que deslizavam pelas ruas.

“Quem olhar do alto dos edifícios será que verá pontos coloridos envoltos em pingos prateados?”. Tal pensamento vez brotar um grande sorriso nos lábios de Carolina. “E eu serei um pontinho vermelho, salpicado de prata, como uma bolinha de árvore de Natal! Sim! Hoje o mundo parece uma grande e luminosa árvore de Natal!”.

Algumas pessoas, menos apressadas, olhavam Carolina com espanto. Pensavam: “Como alguém pode sorrir assim, num dia tão melancólico!”. Mas Carolina não se importava com os dias pálidos, com a chuva, com o frio. Carolina, na verdade, amava esses dias de inverno, pois era neles que sua imaginação começava a voar. Pois, para Carolina, era muito mais fácil tecer devaneios no brilho do verão ou no esplendor da primavera, onde as luzes, as cores, os cheiros, os sabores invadiam e inebriavam os sentidos, fazendo as pessoas voarem e sonharem. Difícil mesmo era gerar vida a partir do gelo, do frio, da chuva, do branco, do preto e do gris. Era complicado tecer costuras, pinturas, sinfonias, textos, coreografias! Era preciso muito força, muita determinação!

Mas Carolina, desde cedo, aprendera a ser determinada! Nascera no mundo cinza e, mesmo assim, não se resignara com sua falta de cores. Gostava de colorir o mundo! Era como construir caleidoscópios, que mudavam de formas e de cores com suaves movimentos das mãos. Mundos-caleidoscópios. Mundos-arco-irís! Mundos coloridos que desafiavam as geleiras monótonas. Mundos que dançavam valsas com vestidos vaporosos e multicoloridos em lagos congelados. Mundos-Carolina.

Quando criança, Carolina e os irmãos, haviam encontrado perdido no lixo, um pequeno objeto. Os irmãos não deram importância, mas Carolina decidira explorá-lo. Primeiro, girou-o vagarosamente nas mãos, pensando: “Para que serve isso?”. Depois, ao ver o pequeno orifício, decidiu experimentá-lo nos olhos. Ficou simplesmente extasiada com aquilo que via! À medida que girava o pequenino objeto mudavam as formas, mudavam as cores! O mundo não era mais cinza, mas se tornava pleno de todas as formas, de todas as cores!

A partir desse dia, o caleidoscópio se tornou companheiro inseparável de Carolina. Aliás, ela só foi saber seu nome em uma das aulas do colégio, nos poucos anos que as frequentara. Achara a palavra tão mágica quanto o objeto. CA-LE-DOS-CÓ-PIO. Gostava de repetir baixinho, saboreando cada sílaba. Quando ficava triste, desanimada, com medo, com fome, com frio, Carolina sabia que tudo sempre poderia mudar de formas, ter novas cores. Era só olhar pelo pequeno orifício e gira-lo nas mãos.

Envolta em seus pensamentos-caleidoscópios Carolina deu-se conta que já se encontrava em frente ao velho sobrado onde havia sido indicada para trabalhar. Já o visitara uma vez, trazida por Dona Ana, sua simpática e solicita vizinha, que sempre ajudava à pobre e grande família de Carolina. O sobrado branco com janelas amarelas na esquina da praça pertencia a um velho e reservado doutor. Conforme o combinado, Carolina deveria vir uma vez por semana, sempre as sextas-feiras, para limpar a biblioteca. Dona Ana, que cozinhava e cuidava do resto da casa, lhe contara que o doutor era muito exigente e tinha muito cuidado com seus livros. Por isso, pedira alguém de “muita confiança”! E Dona Ana a tinha recomendado bem! E ela não iria decepcioná-los!

Carolina subiu os degraus e apertou a campainha. Logo Dona Ana abriu a porta. Recebeu Carolina com um alegre sorriso! “Então menina, vamos nos aquecer um pouquinho antes de começar o trabalho!”, disse alegremente levando Carolina para a grande cozinha. Como na primeira vez, Carolina ficou encantada com a beleza da casa! Tão grande, tão colorida, cheia de quadros, tapetes, cortinas! “Como um palácio!”, pensou Carolina.

Na grande cozinha, Dona Ana serviu um café quente para Carolina. Foi bom sentir não apenas o cheiro delicioso de café recém-passado, mas o calor da xícara nas mãos e o gosto forte e revigorante, que literalmente esquentou o corpo de Carolina. Enquanto Carolina deliciava-se com o café quente, Dona Ana tagarelava. Recontava pela milésima vez que trabalhava na casa do doutor há mais de vinte anos, que cuidara da sua filha desde bebê, que gostava muito da esposa falecida do doutor. Que Carolina não teria como imaginar o quanto a casa ficara triste com a morte da senhora e depois com o casamento da moça. A casa estava vazia e solitária, como o coração do doutor. E o quanto o doutor ficara estranho depois da morte da esposa! Passava horas e horas fechado na biblioteca, ás vezes até fazia as refeições lá. Dona Ana desconfiava que o doutor, em muitas ocasiões, dormia na biblioteca.

Com um leve sorriso e olhos suavemente brilhantes, Carolina comentou o quanto deveria ser maravilhoso ter uma biblioteca, pois as histórias dos livros podem nos fazer companhia quando nos sentimos sozinhos ou tristes. Dona Ana lançou-lhe um olhar onde incredulidade e piedade pareciam coabitar. “A menina ainda precisa aprender muito sobre a vida! Onde se viu livro fazer companhia a alguém! Ainda mais livros que falam coisas de gente doente!”. Querendo colocar um ponto definitivo na conversa que, para Dona Ana, parecia mais uma ideia maluca da sonhadora Carolina, sugeriu que a menina fosse colocar o avental a fim de começar logo o serviço.

Carolina seguiu Dona Ana até a parte da casa destinada aos empregados, vestiu o avental, pegou o material de limpeza e se encaminharam para a biblioteca, que ficava no sótão do sobrado. Enquanto percorriam salas, corredores, escadarias, Carolina queria reter em seus olhos todas as cores e formas que vislumbrava pelo caminho.

Finalmente chegaram à porta que dava acesso a biblioteca. Dona Ana a abriu e fez Carolina entrar, lembrando que deveria tomar cuidado com todos os objetos e não tirar nada do lugar. Voltaria na hora do almoço para pegá-la.

Carolina ficou parada, quase sem ar, frente à magnitude da sala. Praticamente todas as paredes constituíam-se de grandiosas estantes, que iam do chão ao teto, recheadas de livros multicoloridos. Em cada uma delas, enormes escadas móveis pediam solitárias. A única parede sem estantes era uma grande janela, com vistas para as árvores da praça. Em frente à janela estava uma grande mesa, cheia de livros, canetas, lápis, cadernos e um abajur.  Uma cadeira de couro completava o conjunto.

Mas algo chamou a atenção de Carolina, fazendo-a se aproximar da janela. Num canto, havia uma espécie de caleidoscópio, maior que o seu encaixado em um suporte de metal e voltado para o céu. Timidamente Carolina tocou no caleidoscópio estranho. “Será que ele gira?”, pensou. Acariciou amorosamente o caleidoscópio gigante. Frio, gelado e sem movimento. Inclinou e colocou um dos olhos no seu orifício. Viu o céu. “Que estranho! Não gira e não tem cores! Deve estar com defeito. Coitado do doutor!”, pensou.

Um pouco decepcionada, Carolina começou a limpeza. Na primeira estante, limpou cuidadosamente vários livros de medicina, muitos em línguas que não conhecia. Quando iria começar a limpeza da segunda estante, Dona Ana surgiu e a convidou para almoçar.

Foi bom descansar e saborear um delicioso almoço preparado por Dona Ana no calor da cozinha. Depois Carolina voltou ao trabalho. Na segunda estante, encontrou livros diferentes, que não deviam ser do ofício do doutor. Livros com muitas pinturas e esculturas, que deslumbraram os olhos de Carolina com suas cores e suas formas. “Como será ver isso de verdade? Como será tocar?” pensava Carolina, quando abria e olhava os livros que lhe chamavam mais a atenção.

Na terceira estante encontrou livros que julgou serem de histórias, alguns que falavam de terras distantes, de amores, de aventuras, de tristezas, de política. Alguns tinham versos, pois aprendera sobre versos na escola. No final dessa estante Carolina encontrou um livro com a figura do caleidoscópio gigante do doutor. Curiosa, Carolina o abriu. E, então, descobriu que o caleidoscópio gigante se chamava na verdade telescópio e servia para observar as estrelas! E também descobriu que as estrelas eram astros coloridos que estavam no céu.  Então, de certa forma, o telescópio era um caleidoscópio gigante, que via as cores e as formas do céu!

Carolina se aproximou da mesa e viu várias anotações e mapas sobre as estrelas e os planetas. Também leu versos do doutor sobre as estrelas e sobre seu amor pela esposa falecida. Sorrindo feliz Carolina deu-se conta que o doutor, como ela, também sabia ver novas formas e novas cores com seu telescópio, criando um mundo onde as cores e as formas sabem acalentar e fazer sonhar.

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Sobre Murmúrios e Corpos

ImagemNo início havia apenas um corpo. Corpo biológico, corpo-osso, corpo-carne, corpo-músculo. E, então, vagarosamente, se ouviu um som, fios de cadências que aninharam esse corpo. Sussurros, murmúrios que traziam consigo aconchegos. E o corpo começou a desejar ouvir mais sons, mais murmúrios, mais sussurros que lhe escreviam uma cartografia segura no território que lhe cabia ser.

Com a voz o corpo descobriu sua humanidade, seu sexo, seu gênero, sua condição social e econômica. A voz impregnou o corpo com a cultura. E o corpo obedeceu a essa voz primordial, pois a considerava quase divina. Não a contestava, era submisso e resignado. Quase um servo da voz. Escravo da voz. Impregnado pela voz, o corpo estava surdo aos outros murmúrios existentes. Aliás, ele nem sabia que existiam outros murmúrios, outras sonoridades. Vivia apenas pela verdade da voz primordial.

Um dia, distraído, o corpo ouviu um novo murmúrio. Era um murmúrio diferente. Um som diferente. Assustou-se, ficou com medo. Pela primeira vez, se deu conta que a voz não era unívoca, que existiam outros sons, outras palavras, outros murmúrios, outras cadências.

O corpo tentou resistir às novas sonoridades inquietantes. Tentou resistir bravamente, procurando a segurança da voz primordial. Só que a voz primordial foi se transformando, aos poucos, em uma harmonia homogênea, que repetia incessantemente apenas um mesmo som. Som catatônico que se tornou sinônimo de uma voz catatônica.

E o corpo se deu conta da sua catatonia, da sua submissão, da sua imobilidade. Sim, pois o corpo era um autômato, servil e fiel à voz catatônica, incapaz de reconhecer novos murmúrios.

Corajosamente o corpo começou a dar ouvidos a novos sons. Começou verdadeiramente a escutar. E novos sentidos foram despertando: seus olhos começaram a reconhecer novas formas e novas cores, seu paladar se deliciou com outros sabores, seu olfato experimentou diferentes perfumes, sua pele sentiu e fez sentir novos arrepios.

A voz primordial se perdeu no momento em que o corpo se distraiu e se deixou levar por novos acordes. E o corpo descobriu que sua humanidade se escreve por sempre estar à espreita de novos encontros. Encontros capazes de despertar o desejo de escrever novos mapas, desbravar novos territórios.

 

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A Busca – Quinta Parte.

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Foi um duro, longo, gélido inverno. Embora dolorida, machucada, ela estava decidida a recomeçar. Cada levantar-se da cama exigia-lhe forças praticamente sobre humanas. Mas, ela era persistente, teimosa, corajosa. Lutava contra seu corpo e lutava contra sua alma que deseja dormir sem sonhar. A cada manhã inventava novos motivos para viver.
E assim, de combate a combate consigo mesma, a luta foi ficado menos árdua. Até que em uma manhã ela foi despertada por suaves acordes que a embalavam. Tal com uma sinfonia, o canto dos pássaros fizeram sua alma dançar leve, solta, fluída como uma sílfide.
Ela levantou-se da cama, quase em êxtase, e abriu as janelas. Foi presenteada com um céu anil e com doces perfumes que indicavam o início da primavera. Seus olhos encantaram-se com a maravilha da natureza desabrochando. Com os lilases, amarelos, vermelhos, roxos, verdes brilhantes das flores, das árvores, dos gramados banhados por um ainda tímido sol.
Ensaiou um terno alongamento com seu corpo, que parecia também despertar. Sentiu-se novamente dona de si. Então, lembrou-se novamente quem era. E essa recordação a levou até a estante da sala. Pegou ternamente o livro presenteado pelo amigo. Encontrou a bela borboleta. Sentou-se no sofá, admirou longamente a pequena obra de Picasso, desenhando com seus dedos a doce forma da borboleta sobre a gravura. Sorriu satisfeita, pois acabara de tomar uma decisão.
Naquele dia claro e colorido de primavera, preparou um desjejum esplendoroso. Deliciou-se com o cheiro, com o sabor, com a textura do café, dos pães, das frutas, das geléias, dos queijos, das manteigas. Havia recuperado o prazer de comer.
Depois tomou um longo banho. Deixou à água, o sabonete, o xampu lavarem não apenas seu corpo, mas acima de tudo sua alma. Secou-se e delicadamente presenteou seu corpo com um suave creme perfumado. Foi até o quarto, abriu o roupeiro e ficou contemplando vários vestidos. Então se decidiu por um belo vermelho. O colocou com cuidado e olhou-se no espelho. Realmente, deu-se conta que precisava engordar e tomar um pouco de sol. Havia recuperado o prazer de ser bela.
Foi esse prazer que a fez resgatar os estojos, os pincéis de maquilagem. Em frente ao espelho pintou-se com alegria, recuperando as cores, disfarçando a palidez da pele, as olheiras de insônia. Então, escolheu um lindo colar, brincos, pulseiras, anéis e um de seus magníficos sapatos. E borrifou-se com seu perfume predileto.
Satisfeita com o que vi e sentia, saiu de casa com o belo livro de Picasso nas mãos. Foi para o trabalho novamente contente consigo mesma. Chegou espalhando alegria. Todos a olharam com espanto, mas intimamente felizes com a mudança que viam e sentiam. Todos sabiam que ela realmente voltara naquele dia.
Ela tratou da papelada habitual, dos relatórios, dos prazos, dos inúmeros projetos. Resolveu vários pequenos problemas do dia-a-dia, ministrou suas aulas. No intermédio de seus afazeres encontrou numa agenda esquecida o endereço do tatuador indicado pelo amigo. Telefonou, marcou um horário para o final da tarde.
Naquele crepúsculo doce e suave de início de primavera, ela saiu feliz do trabalho, sem dar importância para o vento quente que pretendia enlaçar rudemente seu corpo. Nunca gostara do grotesco vento do norte, de sua animalesca dança com a terra que feria as almas sensíveis e descuidadas. Mas, naquele dia decidira simplesmente ignorá-lo, não o deixar arrebatá-la.
Entrou no seu carro, colocou uma suave música de Nina Simone e dirigiu-se ao endereço do tatuador. Encontrou a casa, desceu do carro e apertou a campainha. Foi atendida por um tímido rapaz, coberto de delicados desenhos. Apresentou-se e mostrou-lhe o que pretendia.
Ele a fez dirigir-se para a sala onde trabalhava. Reproduziu o desenho e questionou-a onde pretendia fazê-lo. Ela desnudou o vestido mostrando o ombro direito. Então, ele começou a reprodução da obra. Temerosa a princípio, ela logo descobriu que a dor que sentia a libertava de todas as dores que já havia experimentado. Era uma dor de tempestade que explode, mas que encharca a terra de vida, que irá renascer bela e forte.
No final, ficou agradecida ao tímido tatuador. Voltou para casa com o nascer das primeiras estrelas. Naquela noite, redescobriu o prazer de cozinhar. Abriu uma garrafa de vinho tinto chileno e brindou a si mesma e a saúde do amigo. Depois telefonou para ele, que já vivia em uma cidade distante, e contou-lhe de sua nova transgressão. Ouviu a risada alta e alegre e palavras de incentivo e mais puro amor.
E o amigo lembrou-lhe de um de seus poemas prediletos, de Manoel de Barros, que ele costuma recitar-lhe quando a descrevia:
“A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como
sou – eu não aceito.
Não agüento ser apenas um
sujeito que abre
portas, que puxa válvulas,
que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora,
que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas”.

E então, ela soube: estava preparada para o Encontro.

 

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A Busca – Quarta Parte.

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(Para o Lú, com minha gratidão e meu profundo e incondicional amor)

Logo chegou o inverno, que trouxe com ele o forte vento minuano, com seu sopro insípido e cortante, e a doce geada, que espalhou finas e suaves camadas de gelos, lembrando cintilantes fadas dançantes tecendo bailados sobre os galhos secos das árvores e sobre as relvas dos gramados.
Ela estava encolhida sob as cobertas numa posição fetal. Sentia não apenas frio no corpo, mas acima de tudo frio na alma. O simples gesto de abrir os olhos lhe desencadeava profunda e infinita dor. Por isso, os mantinha fechados. Por isso, conserva-se imóvel.
Ouviu o leve ruído do abrir da porta. Seus sentidos despertaram. Tal como uma suave brisa calorosa percebeu a presença do amigo. Ele deitou-se ao seu lado e a abraçou com ternura. Logo as lágrimas deslizaram por seu rosto. E se transformaram em profundo pranto, que fez seu corpo reagir. Ele continuou abraçando-a com um carinho intenso, somente como aqueles que amam de modo puro e desinteressado são capazes de fazer.
Deixo-a extravasar sua angústia em silêncio enquanto acariciava docemente seus longos cabelos. E ela foi se acalmando aos poucos. E então, a voz suave do amigo tocou sua alma. Ele recordava tempos distantes, onde eles foram imensamente felizes em sua parceria dançante.
Ela deslocou-se para aqueles momentos, para aqueles lugares. Vislumbrou a chegada nos teatros. Viu-se novamente quase menina, chegando nervosa, carregando sua grande bolsa e seu figurino da temporada. Sentiu o deslumbramento de adentrar no camarim luminoso, de largar sua bolsa na cadeira, tirar cuidadosamente o figurino do porta tutu, olhando-o e acariciando-o com profunda admiração e ternura.
Depois, protegia seus dedos dos pés, já profundamente machucados, com esparadrapos e um pouco de xilocaína. Colocava a meia, as sapatilhas e começava seus alongamentos. Logo o amigo chegava com sua presença acolhedora, sua risada fácil e alegre. E alongavam-se juntos, conversavam, brincavam, riam, treinavam os últimos passos da coreografia, já tão exaustivamente ensaiada há meses.
Quando o amigo a deixava, era à hora de vestir o figurino cuidadosamente e começar a maquiar-se. Esse era o momento mais mágico! No instante em que sentava em frente ao espelho com seu estojo de maquilagem e começava a pintar-se, nascia sua personagem da temporada. Encarnava ciganas apaixonadas, espanholas intensas, sedutores cisnes negros. Às vezes também precisava deixar nascer donzelas indefesas e puras, que deveriam morrer por amor. Mas, intimamente, sabia que essas não eram suas melhores interpretações.
O amigo, que conhecia sua alma como ninguém, dizia que ela nascera para ser livre, voar leve e solta como uma borboleta. Por isso, sempre preferia ser seu partner em coreografias mais intensas. Dizia que era o momento em que ela era verdadeira e dona de si. Era quando ele a amava mais profundamente.
Quando acabava sua caracterização saia do camarim e o amigo já estava a sua espera. Iam juntos, de mãos dadas, para as coxias do palco. Num silêncio respeitoso de mais profunda concentração posicionavam-se e realizavam os últimos alongamentos.
Então, escutavam o último sinal e sentiam o friozinho na barriga quando a cortina desnudava o palco. Logo adentrava a luz e a música e eles as deixavam embriagar seus corpos e suas almas.
Flutuavam na cena luminosa. Eram transportados para outros mundos, onde vivenciavam emoções e sentimentos de outras pessoas, de outras épocas. Divertiam-se, brincavam se seduziam em cena. Um menino e uma menina que se tornavam homem e mulher na magia de um palco.
No grand finale terminavam exaustos, como num ato de amor. A música e a luz cessavam e eles corriam para as coxias, onde se abraçavam com ternura. Logo os aplausos os chamavam de volta a cena. Voltavam extasiados e quase envergonhados com tanto reconhecimento e calor das platéias.
E depois de mais um espetáculo, vinham flores, abraços, cumprimentos calorosos. E eles sentiam-se profundamente felizes e realizados naquelas noites. Eram elas que os faziam voltar para as salas de dança, aperfeiçoar suas técnicas em exaustivas aulas, estudar novos personagens, fazer dietas, superar a dor e o cansaço dos corpos em novos ensaios.
As lembranças a embalaram na voz doce do amigo. E ela voltou à realidade do inverno. Já não sentia tanto frio, pois o corpo e a voz do amigo a aqueciam tal como já a aqueceram antes de mais uma estréia de ballet. Não sentia mais tanta dor. Sentia-se tranqüila.
Então, ele começou a falar sobre as borboletas, que de feias larvas, hibernavam num casulo e renasciam livres, belas, soltas, capazes de voar e iniciar novas vidas.
Ela virou-se e acariciou suavemente o rosto do amigo, tal como fazia quando menina-bailarina. Ele continuava a brincar com seus longos cabelos e lhe disse que estava na hora de renascer das cinzas, como uma fênix, como uma borboleta que se liberta de seu casulo.
Ele levantou-se e pegou o livro que lhe presenteava. Entre as pinturas de Picasso lhe mostrou uma borboleta. Uma bela, tênue, mágica borboleta desenhada por Pablo Picasso em Paris, há muitos e muitos anos atrás, nos tempos da guerra.
Pela primeira vez em dias, ela se levantou da cama, extasiada com a borboleta. Segurou o livro tão ternamente como se abraça o corpo de um amante imensamente querido.
E sua decisão foi soberana. Iria levantar e abrir as janelas, recomeçar, desenhando no seu corpo a bela borboleta, para nunca mais esquecer quem ela é.

 

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A Busca – Terceira Parte.

p180g63df57mt8rkiilt9v1a601Ela dobrou um dos vestidos que pegara do roupeiro quase sem olhar e o colocou na mala com mãos trêmulas. Fecho-a em seguida, com um movimento rápido, e caminhou até o cabide. Pegou a echarpe, enrolou-a mecanicamente no pescoço e logo vestiu o casaco.
Então seus olhos pousaram no espelho. Viu-se quase sem enxergar-se. Vislumbrou apenas uma sombra pesarosa. Essa visão aumentou sua dor. Afastou os olhos, pegou a mala, abriu a porta do quarto e caminhou pelo longo corredor.
Ao chegar à sala ouviu seus passos no gabinete. Ele devia estar caminhando de um lado a outro, como sempre costumava fazer quando estava nervoso. Ela parou um instante, mas logo a magoa se fez soberana. Decidida pegou a bolsa e as chaves, abriu a porta e saiu do apartamento sem olhar para trás.
Ao sair da garagem sentiu-se quase abençoada com a chuva que atingia seu carro. Sempre gostara das tempestades. Amava o vento que dançava com a chuva e amava os relâmpagos que tingiam o céu com luzes brancas e azuladas. Também amava os trovões que despertavam emoções adormecidas e esquecidas.
Concebia a tempestade como algo transgressor, como gritos de revoltas, como desejos de transformação, como sinais de novas vidas que nasciam. Para ela, a tempestade sempre fora uma revolucionária.
Lembrou-se de seu tempo de menina. De seu tempo de boa menina. Quando ficava entediada com os aprendizados de como tornar-se uma boa menina, ansiava pelas tempestades. Sonhava com elas! Suas chegadas pareciam lhe dizer que existiam outros caminhos, caminhos de liberdade, caminhos de escolhas, caminhos aonde ela iria novamente voltar a encontrar a verdadeira menina, aquela menina que dançava no jardim.
E como amava o cheiro do jardim depois que uma tempestade caia! Era como se o jardim renascesse! E seu desejo de dançar no jardim renascia também. Como era difícil conter o desejo de tirar as meias e os sapatos, soltar os cabelos e desenhar novas formas com seu corpo na quietude perfumada do jardim depois de uma tempestade! Mas ela aprendera a se reprimir. Aprendera a se comportar como a menina que era. Sempre fora uma excelente aluna.
Mas naquela noite de tempestade, sabia que a boa menina fora deixada para trás no momento em que fechara a porta daquele apartamento. Fora a menina que dançava livre no jardim que a fizera a tomar uma decisão. E essa decisão não era a decisão que lhe haviam ensinado. Era uma decisão de tempestade, uma decisão de menina má, de uma menina que resolvera tornar-se protagonista de sua vida.

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A Busca – Segunda Parte

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O sol brincava de esconde-esconde com as nuvens num jogo luminoso que tingia o céu de vermelhos, laranjas, cinzas e azuis, fazendo o crepúsculo cair quase como um quadro impressionista.
Parada em frente à grande janela, ela deliciava-se com o espetáculo multicolorido. A brisa suave brincava com seus cabelos e envolvia seu corpo num doce abraço de amigo. Ela sentiu-se aninhada e acalentada por aqueles braços de vento. Seu vestido começou a dançar delicadamente. E ela atreveu-se a acompanhá-lo.
Fechou os olhos e deixou-se levar pela dança da brisa. Logo rodopiava pela sala. De olhos fechados sentia a canção da brisa, que embalava seu corpo, desenhando movimentos e gestos na quietude do final da tarde de outono. Ela sentia-se, pela primeira vez em anos, novamente livre e feliz.
Em sua dança na brisa lembrava-se da menina que gostava de dançar no jardim de sua antiga casa. Sentiu aquela menina novamente dentro de si. Recordou a risada alta e alegre, o desejo de liberdade que experimentava sempre quando tirava os sapatos e as meias e sentia a relva sob seus pés. Era esse contato que lhe despertava o desejo de dançar. Então, a menina serelepe soltava os cabelos, fechava os olhos e se deixava encantar pela dança do vento. Soltava seu corpo e criava danças mágicas e únicas na quietude do jardim. Rodopiava, saltava, importando-se em apenas ser feliz. E como ela era feliz na sua dança com o vento!
Mas, um dia, disseram à menina que não era certo dançar assim no jardim. Que meninas como ela não podiam simplesmente tirar as meias e os sapatos, soltar o cabelo, rodopiar e saltar no jardim. Ela precisava aprender a ser uma boa menina! Aterrorizada frente à perspectiva de não ser aceita e amada por aqueles que tanto admirava e amava, a menina cedeu.
Embora sentisse o chamado do vento, nunca mais se atreveu a dançar no jardim. Empenhou-se em ser uma boa menina. Tornou-se uma boa menina. Aliás, encarnou a perfeição das meninas. E essa menina perfeita cresceu fazendo-se uma primorosa mulher.
Mas o vento era insistente… Ele continuava a chamá-la em segredo. Sussurrava em seus ouvidos, lhe dizia que não era errado dançar no jardim. Ele apenas personificava a liberdade da alma, a pureza dos gestos, o prazer de entregar-se aos livres movimentos do corpo, sem culpas ou remorsos. O vento era somente pura felicidade, pura alegria, puro prazer.
E ela sentiu novamente aquela felicidade, aquela alegria, aquele prazer que a menina havia experimentado em sua infância. Sentiu a relva sob seus pés descalços. Sentiu o abraço doce e delicado do vento.
Então parou ofegante. Abriu lentamente os olhos. Lá fora as primeiras estrelas iluminavam o céu outonal com sua luz pálida. Seu sorriso triste tornou-se aos poucos numa risada alta e alegre.
A menina voltara. E agora ela sabia o que fazer com os cacos de sua vida. Iria transformá-los em um alegre calidoscópio, tecendo danças com seu esquecido e amado amigo, o vento.

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A Busca – Primeira Parte

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A chuva caia forte e o vento passava cantando e estremecendo as janelas.
Dentro da casa a lareira crepitava, enchendo o ar com seu som seco.
Ela encheu o cálice com mais vinho e acendeu um cigarro. Tragou e soltou a fumaça vagarosamente, pensando que ela levasse também partes de sua alma.
Estava sozinha na casa gelada. E a solidão doía como um punhal que se finca aos poucos e vai dilacerando, corroendo, abrindo chagas que nunca iriam parar de sangrar.
Estava sozinha novamente com todos os seus fantasmas e angústias. Passavam imagens diante de seus olhos: a menina que dançava no jardim com seu vestido branco domingueiro, o primo a correr com seus cabelos de ouro, a mãe lendo na varanda, a chuva, o medo, o vento, a morte. E a cabeça parecendo explodir, e o coração se dilacerando, e a alma presa a debater-se e a eterna procura de uma fuga.
O cálice se espatifou no chão, manchando de vermelho o branco do tapete. Isso a despertou. Ela se levantou trêmula e se se encostou à parede. Deslizou lentamente sentindo o frio dos tijolos acariciando suavemente suas costas. Lágrimas lhe escorriam pelas faces. Abraçou as pernas e se recolheu numa posição quase fetal.
Um trovão soou forte e a fez estremecer. Ele a havia deixado novamente solitária. Havia saído mais uma vez, sem se preocupar com ela, sem hora para o retorno. Ela sabia que no dia seguinte suas tênues e tímidas interrogações receberiam respostas evasivas e que acabariam silenciadas por um beijo distraído acompanhado por um afago quase infantil, que suavemente despentearia seus cabelos.
Ela secou as lágrimas com as costas das mãos e se levantou dolorida. Esmagou o cigarro, que praticamente queimara sozinho, no cinzeiro repleto, sujando de cinzas o escarlate de suas unhas. Juntou os cacos da taça, limpou o tapete e foi tentar dormir, enquanto o fogo da lareira morria em agonia.
Lá fora, a chuva continuava dançando em uma triste valsa de buscas e recordações.

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